quarta-feira, 5 de março de 2008

Entrevista: Maria Helena Guimarães de Castro: Premiar o mérito

Antes de ler a entrevista da Secretária de Educação do Estado de São Paulo, reflita:

João e o mérito

Jõao é filho de mãe solteira, mora numa favela na periferia de São Paulo. Seu dia começa às 7h quando sai para pedir dinheiro num cruzamento de uma movimentada avenida na Zona leste de São Paulo. Este dinheiro é dividido com Creuza, sua agenciadora, que fica com 80% dos R$10,00 que João pode conseguir num "bom dia de trabalho". Por volta das 12 h, João almoça um pão com molho de salsicha num dos botecos do Jardim Sapopemba e vai para a escola, estudar. Na Escola, João encontra outros amigos com histórias muito parecidas às suas, alguns já trabalhando para o tráfico de drogas ou cometendo outros delitos. O professor entra na aula e começa sua exposição sobre matemática, João olha pela janela e só consegue pensar na dor que a fome lhe dá no estômago. Alguns poucos minutos depois, a Inspetora de alunos passa tranquilamente pelos corredores avisando que a escola terá que fechar as portas por ordem do traficante local. Ele sai desanimado por não conseguir a merenda, mas, João já se acostumou com este dia a dia de incertezas. Quanto a escola, obviamente não consegue as boas notas exigidas pelo Estado, é simples: não haverá repasse de verbas, João não tem mérito, seus professores também não.

Eduardo Kawamura



Entrevista da Secretária de Educação do Estado de São Paulo à revista Veja.

A secretária de Educação de São Paulo diz que o Brasil precisa livrar-se de vez do corporativismo
e dar incentivos a quem merece.

Monica Weinberg
Paulo Vitale

"A velha política de isonomia salarial contribui para a acomodaçãodos professores numa zona de mediocridade"Como secretária estadual de Educação em São Paulo, a professora MariaHelena Guimarães de Castro, 61 anos, comanda uma rede de5 500 escolas, 250 000 professores e 5 milhões de alunos. Nenhumaoutra no país chega perto de tais números. É justamente nesse universo que será implantado pela primeira vez no Brasil um sistema segundo oqual as escolas passarão a ter metas acadêmicas no horizonte ereceberão mais verbas caso consigam cumpri-las. O tal bônus será distribuído entre os funcionários. Depois de anunciado o novo sistema, a secretária passou a receber dezenas de e-mails de professores, alguns deles furiosos. "Eles querem aumento de salário, sim, mas dissociado do desempenho. Estão na contramão", diz a secretária.Cientista social de formação, desde 1993, quando assumiu a Secretariade Educação em Campinas, Maria Helena ocupou diversos cargos públicos,entre eles o de secretária executiva do Ministério da Educação (MEC),durante o governo FHC, onde é lembrada por ter liderado a construção de um valioso sistema de avaliação das escolas brasileiras. Casada, mãe de três filhos e avó de quatro netos, ela concedeu a VEJA a seguinte entrevista.

Veja – Nas próximas semanas, as escolas estaduais de São Paulo setornarão as primeiras no país a ter metas acadêmicas a cumprir – e aser premiadas com mais dinheiro caso consigam atingi-las. Quais resultados a senhora espera alcançar com tais medidas?
Maria Helena – O objetivo é criar incentivos concretos para o progresso das escolas, a exemplo da bem-sucedida experiência de outros países do mundo desenvolvido, como Inglaterra e Estados Unidos. Eles não inventaram nenhuma fórmula mirabolante, mas, sim, conseguiram porém prática sistemas capazes de distinguir e premiar, com base em critérios objetivos, as escolas com bom desempenho acadêmico. As pesquisas mostram que, em todos os lugares onde uma política de reconhecimento ao mérito foi implantada, a educação avançou. No Brasil, esse é um debate novo e, infelizmente, ainda contraria uma parcela dos educadores.

Veja – Qual é exatamente o motivo das críticas ao novo sistema?
Maria Helena – Em pleno século XXI, há pessoas que persistem em umavisão sindicalista ultrapassada e corporativista, segundo a qual todos os professores merecem ganhar o mesmo salário no fim do mês. Essa velha política da isonomia salarial passa ao largo dos diferentesresultados obtidos em sala de aula, e aí está o erro. Ao ignorarméritos e deméritos, ela deixa de jogar luz sobre os mais talentosos e esforçados e, com isso, contribui para a acomodação de uma massa de profissionais numa zona de mediocridade. Por isso, demos um passo na direção oposta.

Veja – Os professores se queixam de salários baixos. A senhora dá razão a eles?
Maria Helena – Na comparação com outros profissionais no Brasil etambém com professores de escolas particulares, um conjunto depesquisas já demonstrou que os salários dos docentes na rede públicachegam a ser até mais altos. Esse é um fato, ancorado em números.Apesar disso, acho, sim, que faz parte das atribuições do estado criarestímulos financeiros à carreira, de modo a valorizá-la e conseguiratrair mais gente boa para as escolas públicas. O que não se pode fazer é defender aumento de salário indiscriminado para professor ruim, desinteressado ou que mal aparece na escola. Quem merece mais dinheiro no fim do mês são os bons professores e aquelas escolas públicas capazes de oferecer um raro ensino de qualidade, apesar das evidentes dificuldades.

Veja – Como funcionará o novo sistema de premiação dos professores em São Paulo?Maria Helena – Criamos um indicador para aferir a situação atual decada escola e, com base nele, estabelecer metas concretas. O desempenho dos alunos em provas aplicadas pela própria secretaria teráo maior peso. Esse é, não resta dúvida, um excelente medidor dosucesso acadêmico de uma escola. Outro é o tempo que um aluno levapara concluir os ciclos escolares. Da combinação desses e mais fatoresresultará o tal índice. Depois de um ano, ele voltará a ser calculado. Só as escolas que conseguirem melhorar nas estatísticas vão recebermais dinheiro.

Veja – De quanto será o prêmio?
Maria Helena – O bônus pode chegar ao equivalente a mais três salários num ano. Isso para cada funcionário da escola, da faxineira ao diretor. Foi com um sistema bem semelhante a esse que a cidade de NovaYork alcançou avanços notáveis. Fizemos aqui uma adaptação necessáriaà realidade brasileira: os professores mais faltosos serãoautomaticamente excluídos da lista dos premiados. É apenas o justo. O Brasil ainda está pouco habituado a encarar as políticas para aeducação sob uma ótica mais voltada para os alunos. Eles merecem, afinal, assistir a uma boa aula – e por isso estamos deixando de premiar os professores campeões em ausência.

Veja – De acordo com os mais recentes dados da OCDE (organização que reúne países da Europa e os Estados Unidos), os estudantes brasileirosa parecem nas últimas colocações em leitura, ciências e matemática. Como mudar esse cenário?
Maria Helena – Um passo fundamental é fazer a escola se sentir
responsável pelos resultados dos estudantes, algo ainda bastante longínquo, mas possível de alcançar com a cobrança de metas. Fiz uma pesquisa sobre o assunto na qual professores entrevistados em diferentes estados brasileiros repetiam a mesmíssima ladainha: "As notas dos alunos são ruins porque a escola pública é carente de recursos e os professores ganham mal". Não acho que seja razoável atribuir tudo a fatores externos. Segundo essa mentalidade atrasada e comodista, a culpa pelo péssimo desempenho geral é invariavelmente doestado brasileiro, nunca dos próprios professores, muitos dos quaisincapacitados para dar uma boa aula. A falta de professores preparadospara desempenhar a função é, afinal, um mal crônico do sistemaeducacional brasileiro. Sem desatar esse nó, não dá para pensar em bom ensino.

Veja – Qual seria o melhor caminho para elevar o nível dos professores?
Maria Helena – Num mundo ideal, eu fecharia todas as faculdades depedagogia do país, até mesmo as mais conceituadas, como a da USP e ada Unicamp, e recomeçaria tudo do zero. Isso porque se consagrou noBrasil um tipo de curso de pedagogia voltado para assuntosexclusivamente teóricos, sem nenhuma conexão com as escolas públicas esuas reais demandas. Esse é um modelo equivocado. No dia-a-dia, osalunos de pedagogia se perdem em longas discussões sobre as grandesquestões do universo e os maiores pensadores da humanidade, masignoram o básico sobre didática. As faculdades de educação estão muitopreocupadas com um discurso ideológico sobre as múltiplas funçõestransformadoras do ensino. Elas deixam em segundo plano evidênciascientíficas sobre as práticas pedagógicas que de fato funcionam noBrasil e no mundo. Com isso, também prestam o desserviço de divulgar eperpetuar antigos mitos. Ao retirar o foco das questões centrais,esses mitos só atrapalham.

Veja – A senhora pode dar alguns exemplos desses mitos?
Maria Helena – Um dos mais populares é aquele segundo o qual o aumentono salário dos professores leva sempre à melhoria do ensino. Aspesquisas mostram que, quando o dinheiro vem dissociado de umapolítica de reconhecimento do mérito, ele surte pouco ou nenhumefeito. Um segundo mito bastante divulgado diz respeito ao tamanho dasclasses. Os educadores afirmam por aí ser impossível oferecer uma boaaula diante de classes cheias, mas os estudos sobre o assunto indicamque, tirando as séries iniciais, esse é um fator de pouca relevância.Escolas de diferentes países decidiram inclusive aumentar o número de alunos em sala de aula para resolver outra questão – esta, sim, degrande efeito positivo. Eles estão esticando as horas de permanênciados estudantes nas escolas e, para arcar com os custos da medida,precisam fazer caber mais gente numa mesma sala. Resta ainda o mito dolivro didático. Os estudantes de faculdades de pedagogia aprendem aencarar os livros como uma espécie de camisa-de-força, e não como umabase a partir da qual podem ampliar os horizontes em sala de aula.

Veja – O currículo escolar também é visto com certa reticência pelosprofessores brasileiros, segundo mostram as pesquisas...
Maria Helena – De novo, os professores se sentem tolhidos na sualiberdade de ensinar – baboseira ideológica que passa ao largo de umaquestão central. Sem contar com um currículo, o professor de escolapública no Brasil, de modo geral, continua a encarar as classes semuma referência mínima na qual se mirar. Poucos estados brasileiros(entre as exceções, São Paulo, Minas Gerais e o Tocantins) dispõem deum currículo para oferecer às escolas, no qual estejam incluídos os assuntos a ser abordados em cada matéria, no detalhe. É uma pena. A experiência mostra que professores com um apoio didático dessa natureza vão mais longe em sala de aula. Investir na construção de um currículo, como fizeram alguns dos países da Europa dois séculosatrás, é certamente um destino mais adequado para as verbas públicasdo que esparramar canteiros de obras Brasil afora – um caminho tão comum para o orçamento da educação no país.

Veja – Quais são as melhores aplicações para o dinheiro destinado à educação?
Maria Helena – Três tipos de uso do dinheiro surtem mais efeito emsala de aula, conforme apontam as pesquisas: além do investimento emprodução de material didático, os cursos para melhorar a formação dosprofessores e os programas de valorização aos bons docentes tambémresultam em melhorias concretas no nível do ensino. Não dá para fugirainda de gastos extras com escolas sem a infra-estrutura mínima. À frente dos 5 500 colégios estaduais de São Paulo, tenho visto de tudo.Em algumas das escolas, a diretora precisa retirar diariamente lâmpadas e fiações ao final das aulas, para evitar roubos por partedos próprios alunos. Eles costumavam trocar esses objetos por drogas. Outras escolas se tornaram verdadeiros emaranhados de "puxadinhos", extensões labirínticas do prédio original feitas pela própriacomunidade. São apenas alguns retratos da desordem que precisamosenfrentar. Diante de tantas precariedades, a velha tradição brasileirade fazer pirotecnia com o dinheiro público da educação não parece ter o menor sentido.

Veja – A que tipo de "pirotecnia" a senhora se refere?
Maria Helena – À construção de escolas monumentais, repletas de quadras poliesportivas, piscinas olímpicas e centenas de computadores, por exemplo. Em geral, elas são um convite à gastança de dinheiro semnenhuma evidência de retorno para a sala de aula a longo prazo. Issoporque, segundo indica a experiência, em pouco tempo essas escolasentram em decadência por exigir uma manutenção cara demais para os cofres públicos. Volto à mesma tecla: o que dá certo na educação é aaplicação disciplinada de um conjunto de medidas bem mais básicas – e não aquelas de efeito festivo e mais vistosas, como ainda preferem alguns.

Veja – Como algumas escolas públicas conseguem sobressair diante dasdemais, apesar do mesmo orçamento apertado?
Maria Helena – Há um fator comum a todas as escolas nota 10, e ele merece a atenção das demais: trata-se da presença de um diretor competente, com atributos de liderança semelhantes aos de qualquer chefe numa grande empresa. Sob sua batuta, os professores trabalham estimulados, os alunos desfrutam um clima positivo para o aprendizado e os pais são atraídos para o ambiente escolar. Se tais diretores fossem a maioria, o ensino público não estaria tão mal das pernas.

Veja – Na sua opinião, o Ministério da Educação (MEC) tem tomado medidas acertadas?
Maria Helena – No geral, sim. Os esforços concentrados para melhorar aeducação básica e a ênfase dada às avaliações das escolas são dois dospontos positivos. Para mim, ver a educação de volta aos trilhos é um alívio. No primeiro mandato do governo Lula, tive meus momentos de tristeza.

Veja – Por quê?
Maria Helena – Foi um período de paralisia para a educação, com um retrocesso: o desmantelamento do antigo Provão, uma prova criada durante o governo Fernando Henrique para aferir a qualidade das universidades. Funcionava bem, mas acabou vítima de um velho hábito da política brasileira: o de não dar continuidade às medidas adotadas pelos antecessores. Numa área como a educação, de resultados de longo prazo, o tradicional bota-abaixo a cada troca de governo é algo a ser combatido, tal qual fizeram países como a Irlanda e a Coréia do Sul, hoje modelos na educação. Eles só conseguiram abandonar o atoleiro de notas vermelhas depois de firmar uma espécie de pacto nacional, capaz de sobreviver às sucessivas trocas de governo ao longo de décadas. O Brasil tem hoje uma meta, para daqui a quinze anos, e há um bom consenso em torno das estratégias para alcançá-la. Precisa, daqui paraa frente, começar a dar mostras de maturidade política para conseguir deixar a rabeira nos rankings internacionais de ensino – e, quem sabe um dia, aparecer entre os melhores.

Um comentário:

Vanessa Crecci disse...

Legal, Meninas

A iniciativa do Blog!!!

E muito boa a divulgação desta reportagem lamentável!!!

[]´s
Vanessa